por Carolina Maria
Ruy
A conquista do voto
feminino chegou aos 90 anos em 2022. Assim como a carteira profissional. E o
que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo a ver. A conquista do voto feminino e
a instituição da carteira profissional, que identifica os trabalhadores urbanos
garantindo-lhes uma série de direitos, foram etapas das transformações que o
Brasil viveu a partir de 1930 passando de um país essencialmente rural para um
processo ascendente de urbanização.
É justo pontuar que a
Primeira Guerra Mundial (1914/1918) pressionou o país a diversificar sua
economia e provocou uma onda migratória que mudou o perfil da classe
trabalhadora. Tanto que datam daquele período as primeiras greves operárias e a
Confederação Operária Brasileira (COB), que existiu entre 1906 e 1920.
Mas embora já
existissem indústrias no Brasil antes de 1930, sobretudo em torno da economia
cafeeira, elas não eram suficientes para conferir um caráter urbano na
configuração brasileira. Os latifúndios e as oligarquias rurais é que davam o
tom.
Segundo o jornalista
José Luiz Del Roio, em entrevista ao Centro de Memória Sindical, na época da
Greve Geral de 1917 “a dominação oligárquica foi praticamente total” com
“controle do voto, a maioria da população brasileira camponesa, mergulhada na
miséria e ignorância”.
Ligada ao que ele
chamou de “feudalismo do campo”, a burguesia industrial mantinha uma concepção
escravocrata em relação aos operários. “Tanto é”, diz Del Roio, “que os
primeiros italianos que vieram para cá chamavam esses trabalhadores [os novos
imigrantes] de squiave bianque, os escravos brancos”. Del Roio explica que se
tratava de uma classe feroz, que não tinha um projeto de nação e não concedia
nada.
Em um contexto como
aquele, em que práticas que se tornaram conhecidas como coronelismo e voto de
cabresto eram frequentes, a luta das mulheres por participação política e pelo
direito ao voto não encontrava espaço. Da mesma forma, a luta por direitos
trabalhistas chocava-se com a mentalidade escravista dos barões do café com
leite.
O arranjo que vigorou
nas primeiras décadas da República fincou raízes na política e na economia
brasileira, com forte influência na cultura e nas relações sociais, mas o
sistema que o sustentava explodiu com a instabilidade gerada pela quebra da
Bolsa de Nova Iorque, em 1929. No ensejo daquela crise global que varreu o
mercado do café, irrompeu a chamada Revolução de 30 catalisando as mudanças que
se impunham para o país em um mundo que depois da Primeira Guerra já não era
mais o mesmo.
Getúlio Vargas
assumiu a chefia do Governo Provisório em 3 de novembro de 1930, rompendo com
as oligarquias que comandavam o país e investiu em um projeto de
industrialização que também fincou raízes, passando a compor as bases estruturais
do país.
Demandas históricas
como o voto feminino e direitos trabalhistas encontraram vazão nos planos de
Vargas porque iam de encontro com as necessidades dos novos tempos.
Necessidades como a formação de cidadãos, de um mercado consumidor e de
trabalhadores preparados para a vida urbana.
Conquista do voto
feminino
A conquista do voto
feminino foi talvez o mais emblemático avanço em uma série de mudanças
proporcionadas pela criação do Código Eleitoral pelo Decreto nº 21.076, de 24
de fevereiro de 1932. O Decreto também criou a Justiça Eleitoral e instituiu o
voto secreto, uma grande evolução com relação à Constituição de 1891 que, ao
prever o voto aberto, permitia práticas de coerção como o voto de cabresto.
A luta das mulheres
por mais direitos vinha de longe como explica a historiadora Teresa Cristina De
Novaes Marques no livro “O voto feminino no Brasil” (Edições Câmara, 2018). Sem
o ativismo de personalidades como Nísia Floresta (1810/1885), Leolinda Daltro
(1859/1935) e Bertha Lutz (1894/1976) as mulheres não teriam conquistado o
poder de votar e serem votadas em 1932.
Teresa Cristina fala
que: “Quando Vargas deu sinais de que pretendia reformular as leis eleitorais
do país e promover eleições para o Legislativo, as feministas da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino e de outras entidades políticas compostas
por mulheres procuraram conversar com o presidente para que, finalmente, o
direito de votar fosse estendido às mulheres brasileiras”.
Consta que Vargas, ao
receber as delegadas do Segundo Congresso Internacional Feminista no Palácio do
Catete em junho de 1931 manifestou simpatia à causa pois achava que “o país
estava preparado para o acolhimento dessas ideias, visto que elas não
contrariavam a tradição da família brasileira”.
A comissão
responsável por debater o voto feminino ainda tentou impor restrições às
mulheres casadas, que deveriam ter autorização dos maridos. Mas, segundo
Tereza, “Ouvindo o apelo das mulheres a essas restrições, Vargas revisou
pessoalmente o texto da comissão e o decreto do novo Código Eleitoral,
publicado em 24 de fevereiro de 1932, acolheu o voto feminino sem condições
excepcionais. As mulheres poderiam votar e ser votadas”.
A exceção foi às
mulheres que não eram alfabetizadas. O voto foi estendido a todos, sem
restrição, inclusive aos analfabetos, somente na Constituição de 1988.
Criação da carteira
profissional
Um mês depois da
criação do Código Eleitoral, o decreto nº 21.175, de 21 de março de 1932,
instituiu a carteira profissional no processo de estabelecimento do Ministério
do Trabalho, (criado em 26 de novembro de 1930). Ao substituir a Carteira de
Trabalhador Agrícola, o documento assinalava o anseio modernizador daquele novo
governo.
Os dizeres no verso
da carteira indicavam a nova linha, expondo tanto o controle do Estado quanto a
proteção legal dos trabalhadores, além do vínculo sindical que permitiu durante
décadas a arrecadação e estruturação dos sindicatos:
“Por menos que pareça
e por mais trabalho que dê ao interessado, a carteira profissional é um
documento indispensável à proteção do trabalhador. Elemento de qualificação
civil e de habilitação profissional, a carteira representa também título
originário para a colocação, para a inscrição sindical e, ainda, um instrumento
prático do contrato individual de trabalho”.
A carteira
profissional dava ao governo o poder de regular as relações de trabalho e de
aplicar as novas leis garantindo o acesso a direitos como salário mínimo,
férias anuais e a jornada de 8 horas diárias seis vezes por semana (lei de maio
de 1932, atendendo a uma reivindicação histórica dos operários que chegavam a
trabalhar 14 horas por dia).
Interesses que se
chocam a todo momento
Apesar dos períodos
de graves retrocessos pelos quais o Brasil passou nesses noventa anos, como os
21 anos de ditadura militar (1964 a 1985) e os últimos anos, desde o governo
reformista e liberal de Michel Temer até a política dos absurdos do atual
governante do Executivo Federal, aquelas conquistas de 1932 estão assimiladas
pela nossa sociedade e pela nossa cultura. Estão enraizadas.
A regulação das
relações de trabalho com a consolidação de direitos socias e a criação do
Código Eleitoral que instituiu o voto feminino representaram uma ruptura
radical com o perfil escravista e colonialista que dominava a sociedade
brasileira sem freios e contrapesos. E sua implementação forçou a sociedade a
desenvolver uma nova visão sobre as mulheres e sobre os trabalhadores, que
passam a ser vistos como cidadãs e cidadãos.
As conquistas sociais
convivem com o atraso sempre à espreita em um movimento complexo e não linear
em que interesses conflitantes se chocam a todo momento. Interesses dos
trabalhadores e da população vulnerável em ter mais direitos, mais dignidade,
melhores condições, e, do outro lado, interesses das classes que se beneficiam
das desigualdades e assimetrias do mundo capitalista.
Sem aquelas rupturas
e transformações que ocorreram a partir de 1930, no entanto, estaríamos hoje
desarmados para enfrentar as situações que tivemos, e temos, que enfrentar.
* Carolina Maria Ruy
é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical