do Obvious
Hannah Arendt na Av. Paulista
por Dante Donatelli
O conceito de Ralé em Hannah Arendt e as manifestações
Hannah Arendt (1906-1975) alemã de nascimento, fugiu para os Estados Unidos em
razão do nazismo e da perseguição aos judeus. Pensadora das maiores da história
ocidental, tem uma vasta obra dedicada a filosofia política, a ética e a
entender como chegamos a isto que hoje somos. A maioria da suas obras está
traduzida para o português, porém, é pouco lida e pouco estuda por estas
bandas, até porque, vivendo e produzindo em pleno século XX não é uma pensadora
fácil de se classificar nos rótulos disponíveis no mercado de ontem e de hoje.
É mais fácil dizer o que ela não é do que a enquadrar em algum modelo
ideológico.
Lendo e relendo suas obras, em especial A Origem do Totalitarismo (2012, Cia
das Letras, SP) imagino o como ela leria as manifestações de ódio que brotam em
nossa sociedade hoje, e lendo o artigo do escritor Bernardo Carvalho Tolerância
Zero, Discurso de Ódio se propaga em meio a mudanças sociais, políticas e
ideológicas no país. (Folha de São Paulo, Ilustríssima, 09/07/2015 p. 6-7) como
seria possível se posicionar diante da estupidez que nos assola e promete tomar
conta ainda mais da vida brasileira depois do dia dezesseis. Imagino Hannah,
olhando a Av. Paulista e a fauna que dela se ocupará em êxtase, clamando pelo
fim da política e da democracia.
Antes de mais, quando falo da Av. Paulista e da fauna que lá estará penso
inicialmente, nestes “líderes” de Revoltados OnLine, Movimento Brasil Livre,
Vem pra Rua, SOS Forças Armadas e grupelhos de extrema direita fomentados por
figuras como Olavo de Carvalho e endossados por uma trupe de jornalistas
descabeçados e, evidentemente a parte da população que os seguem e se orientam
pelas suas chamadas e crenças, gente que parece odiar tudo o que seja
democrático, ou lembre o que é uma democracia, partindo do princípio elementar
ao achar que todos que não estão lá, na Av. Paulista ou não os apoiam, são
comunista empertigados e devem ser defenestrados da vida pública brasileira.
Ao buscar entender como o nazismo se apossou da Alemanha, Arendt formula a tese
de que a Ralé chegou ao poder, como ela define o que seja esta Ralé? Ela se
funda em grupos residuais de todas as classes sociais, por esta razão lembra
Hannah, é fácil confundi-la com o povo (op. citada p.159) é como se fosse um
grande resto, uma porção das mais diferentes classes sociais que tem em comum
negar a política e a contradição como instâncias da vida social, por isso sua
aversão a política e as práticas de equalização ou equilíbrio social e as
diferentes instâncias da vida democrática; a ralé tem o ódio como missão e a
violência como seus motores.
A Ralé é um “refugo” (p229) nascido dentro da sociedade burguesa que busca o
despotismo como meio de superar todo e qualquer diferença, a força despótica
pode e dá a ralé a oportunidade de se ver representada e legitimada, é força e
negação constantes de qualquer ambiente político ordenado, porque ordem para
ralé é o fim das contradições, é a não política, o cinismo, assim como a
violência, como nota Hannah, norteia as suas práticas. Ver na Avenida Paulista
senhoras e senhores brancos todos emproados ao lado de negros, mulatos e pobres
em nada assusta, é o refugo se fazendo ouvir.
Arremessar bombas caseiras, atentados contra estrangeiros, ofender com baixo
calão, seja onde for, e como for, os opositores e mesmo as figuras públicas é
praxe, é parte da práxis da ralé, a leitura do artigo de Bernardo Carvalho
tratando, entre outros, do imbecil que ofendeu e proferiu palavrões a
presidente na Universidade de Stanford na Califórnia, é sintomático e expõe com
clareza o que estamos afirmando. O dito que fez isto ainda declara, poderia ter
feito pior. Pior aqui se subentende agredir fisicamente ou mesmo perpetrar um atentado
contra a vida da presidente. A ralé é cínica e covarde, as práticas dos grupos
paramilitares nazistas na pré-guerra são reveladoras.
A Ralé não deseja o diálogo, ela quer a barbárie, o confronto, a força
impiedosa sobre todos que estão fora do seu espectro de convencimento e
conivência, querem mais polícia, mais força e ação com o outro. Os mais
radicalizados querem mais militares e mais repressão. A força é o único mote da
ralé. Não basta prender o que é corrupto ou condenar o meliante, é preciso mais
força, a humilhação pública, o achincalhe. As práticas do juiz Moro é um
refresco aos olhos da ralé, policiais armados conduzindo velhos corruptos de
cabeça baixa e mãos para trás como em um reformatório, o ato em si já é uma
ação condenatório. Mas é preciso mais, a ralé deseja mais.
A ralé não crê na justiça, ela acredita antes na força, na violência, porque
entre a força e a justiça há inteligência, e a ralé tem repulsa odiosa ao
intelectual e a seu saber.Dúvidas quanto a isso, o juiz da Lava Jato ou os do
STF somente serão bons se condenarem, não importa se não houver provas ou
amparo legal, só se condenarem. Para ralé o direito é uma falácia todas as
vezes que se opõe aquilo que ela crê a priori como verdade. Estado de Direito,
é só estado, o direito é conveniência, exemplo, nas manifestações de março
muitos diziam em cartazes, Sonegar não é crime.
No domingo veremos forcas, gritos de morte, paredão e guerra santa contra todos
que não somos nós, a ralé quer o fim da política. A outra parte, a massa que lá
comparece se ressente do vocabulário, da necessidade violenta que tem a ralé em
se impor, e como são eles os “organizadores” da manifestação, a massa que
deseja uma política melhor se horroriza ou deveria.
Um dado que Arendt chama a atenção, é o recrudescimento do discurso
nacionalista, somos nós os puros, maculados pela sujeira que vem de fora, o
ódio contra haitianos e congêneres é sintomático deste estado doentio da ralé,
veremos na avenida um punhado de menções a esta sujeira vinda no além fronteiras,
e mesmo em uma sociedade forjada por imigrantes, a insanidade nacionalista
estará presente, em fim de contas, a nacionalidade é uma das poucas certezas e
alívios da ralé, não há classe, isto é coisa de comunista, eu sou brasileiro, a
ralé, como notamos, é o refugo das classes sociais, o pertencimento se dá neste
contexto, um tirano, Bolsonaro cabe como uma luva neste universo, nos une, pela
nacionalidade representada metaforizada na farda e no galardão e nos defende
contra a praga fétida que vem do exterior pois ela tem nome, sobrenome e cor.
A ralé se apossa da nacionalidade como única instância possível de se ver
representada em meio a crença de que a vida pública não precisa de e da
política, ela necessita da violência higienizadora das nossas vidas, e mantenha
bem longe toda e qualquer forma de contradição social, ninguém é confiável para
ralé até que se prove o contrário, o judiciário, a imprensa, as instituições
sociais estão em risco porque nela estão muitos que não são um de nós. Não é à
toa que a família se torna o bastião das garantias sociais, e é defendida, pois
é ela o último lugar de resistência e refúgio seguro da ralé. É preciso
encontrar um homem, um tirano que nos conduza na direção da homogeneização
plena e ao mesmo tempo alimente nosso ódio diário contra o outro. A Ralé, como
lembrou Hannah, se alimenta do ódio cego e doentio, odiar judeus era uma missão
no nazismo, odiar negros era um dever na África do Sul, odiar os diferentes
(estrangeiros, os que não pensam igual etc...) é o dever da nossa Ralé.
Em março, na última manifestação, a ralé acreditou que o governo não duraria
duas semanas, agora, com menos pessoas na rua e um discurso mais radicalizado
esperam que não dure uma semana, porém sem uma parte da política viva e ativa
da sociedade, dificilmente isto irá ocorrer, será preciso convencer uma parte
do mundo político estabelecido para que isso ocorra, e mesmo assim, a parte
expressiva e decisiva, não os oportunistas de plantão. Collor caiu porque ao
lado das ruas havia uma parte expressiva da vida política nacional legitimando
sua saída. A Ralé, por enquanto só comoveu o substrato mais fraco e sujo deste
mundo. Sem dúvida há sempre a opção da força e do golpe, resta saber se a ralé
tem esta força.
GNN